domingo, 16 de junho de 2013

O prazer da leitura


 Alfabetizar é ensinar a ler. A palavra alfabetizar vem de “alfabeto“. “Alfabeto“ é o conjunto das letras de uma língua, colocadas numa certa ordem. É a mesma coisa que “abecedário“. A palavra “alfabeto“ é formada com as duas primeiras letras do alfabeto grego: “alfa“ e “beta“. E “abecedário“, com a junção das quatro primeiras letras do nosso alfabeto: “a“, “b“, “c“ e “d“. Assim sendo, pensei a possibilidade engraçada de que “abecedarizar“, palavra inexistente pudesse ser sinônimo de “alfabetizar”.
 “Alfabetizar“, palavra aparentemente inocente, contém uma teoria de como se aprende a ler. Aprende-se a ler aprendendo-se as letras do alfabeto. Primeiro as letras. Depois, juntando-se as letras, as sílabas. Depois, juntando-se as sílabas, aparecem as palavras...

E assim era. Lembro-me da criançada repetindo em coro, sob a regência da professora: “be a ba; be e be; be i bi; be o bo; be u bu“... Estou olhando para um cartão postal, miniatura de um dos cartazes que antigamente se usavam como tema de redação: uma menina cacheada, deitada de bruços sobre um divã, queixo apoiado na mão, tendo à sua frente um livro aberto onde se vê “fa“, “fe“, “fi“, “fo“, “fu“... (Centro de Referência do Professor, Centro de Memória, Praça da Liberdade, Belo Horizonte, MG.)

Se é assim que se ensina a ler, ensinando as letras, imagino que o ensino da música deveria se chamar “dorremizar“: aprender o dó, o ré, o mi... Juntam-se as notas e a música aparece! Posso imaginar, então, uma aula de iniciação musical em que os alunos ficassem repetindo as notas, sob a regência da professora, na esperança de que, da repetição das notas, a música aparecesse...
Todo mundo sabe que não é assim que se ensina música. A mãe pega o nenezinho e o embala, cantando uma canção de ninar. E o nenezinho entende a canção. O que o nenezinho ouve é a música, e não cada nota, separadamente! E a evidência da sua compreensão está no fato de que ele se tranquiliza e dorme – mesmo nada sabendo sobre notas! Eu aprendi a gostar de música clássica muito antes de saber as notas: minha mãe as tocava ao piano e elas ficaram gravadas na minha cabeça. Somente depois, já fascinado pela música, fui aprender as notas – porque queria tocar piano. A aprendizagem da música começa como percepção de uma totalidade – e nunca com o conhecimento das partes.

Isso é verdadeiro também sobre aprender a ler. Tudo começa quando a criança fica fascinada com as coisas maravilhosas que moram dentro do livro. Não são as letras, as sílabas e as palavras que fascinam. É a estória. A aprendizagem da leitura começa antes da aprendizagem das letras: quando alguém lê e a criança escuta com prazer. “Erotizada“ – sim, erotizada! – pelas delícias da leitura ouvida, a criança se volta para aqueles sinais misteriosos chamados letras. Deseja decifrá-los, compreendê-los – porque eles são a chave que abre o mundo das delícias que moram no livro! Deseja autonomia: ser capaz de chegar ao prazer do texto sem precisar da mediação da pessoa que o está lendo.

No primeiro momento as delícias do texto se encontram na fala do professor. Usando uma sugestão de Melanie Klein, o professor, no ato de ler para os seus alunos, é o “seio bom“, o mediador que liga o aluno ao prazer do texto. Confesso nunca ter tido prazer algum em aulas de gramática ou de análise sintática. Não foi nelas que aprendi as delícias da literatura. Mas me lembro com alegria das aulas de leitura. Na verdade, não eram aulas. Eram concertos. A professor lia, interpretava o texto, e nós ouvíamos extasiados. Ninguém falava. Antes de ler Monteiro Lobato, eu o ouvi. E o bom era que não havia provas sobre aquelas aulas. Era prazer puro. Existe uma incompatibilidade total entre a experiência prazerosa de leitura – experiência vagabunda! – e a experiência de ler a fim de responder questionários de interpretação e compreensão. Era sempre uma tristeza quando a professora fechava o livro...

Vejo, assim, a cena original: a mãe ou o pai, livro aberto, lendo para o filho... Essa experiência é o aperitivo que ficará para sempre guardado na memória afetiva da criança. Na ausência da mãe ou do pai a criança olhará para o livro com desejo e inveja. Desejo, porque ela quer experimentar as delícias que estão contidas nas palavras. E inveja, porque ela gostaria de ter o saber do pai e da mãe: eles são aqueles que têm a chave que abre as portas daquele mundo maravilhoso! Roland Barthes faz uso de uma linda metáfora poética para descrever o que ele desejava fazer, como professor: maternagem: continuar a fazer aquilo que a mãe faz. É isso mesmo: na escola, o professor deverá continuar o processo de leitura afetuosa. Ele lê: a criança ouve, extasiada! Seduzida, ela pedirá: “Por favor, me ensine! Eu quero entrar no livro por conta própria...”
Toda aprendizagem começa com um pedido. Se não houver o pedido, a aprendizagem não acontecerá. Há aquele velho ditado: “É fácil levar a égua até o meio do ribeirão. O difícil é convencer a égua a beber“. Traduzido pela Adélia Prado: “Não quero faca nem queijo. Quero é fome“. Metáfora para o professor: cozinheiro, Babette, que serve o aperitivo para que a criança tenha fome e deseje comer o texto...
Onde se encontra o prazer do texto? Onde se encontra o seu poder de seduzir? Tive a resposta para essa questão acidentalmente, sem que a tivesse procurado. Ele me disse que havia lido um lindo poema de Fernando Pessoa, e citou a primeira frase. Fiquei feliz porque eu também amava aquele poema. Aí ele começou a lê-lo. Estremeci. O poema – aquele poema que eu amava – estava horrível na sua leitura. As palavras que ele lia eram as palavras certas. Mas alguma coisa estava errada! A música estava errada! Todo texto tem dois elementos: as palavras, com o seu significado. E a música... Percebi, então, que todo texto literário se assemelha à música. Uma sonata de Mozart, por exemplo. A sua “letra“ está gravada no papel: as notas. Mas assim, escrita no papel, a sonata não existe como experiência estética. Está morta. É preciso que um intérprete dê vida às notas mortas. Martha Argerich, pianista suprema (sua interpretação do concerto n. 3 de Rachmaninoff me convenceu da superioridade das mulheres...) as toca: seus dedos deslizam leves, rápidos, vigorosos, vagarosos, suaves, nenhum deslize, nenhum tropeção: estamos possuídos pela beleza. A mesma partitura, as mesmas notas, nas mãos de um pianeiro: o toque é duro, sem leveza, tropeções, hesitações, esbarros, erros: é o horror, o desejo que o fim chegue logo.

Todo texto literário é uma partitura musical. As palavras são as notas. Se aquele que lê é um artista, se ele domina a técnica, se ele surfa sobre as palavras, se ele está possuído pelo texto – a beleza acontece. E o texto se apossa do corpo de quem ouve. Mas se aquele que lê não domina a técnica, se ele luta com as palavras, se ele não desliza sobre elas – a leitura não produz prazer: queremos que ela termine logo. Assim, quem ensina a ler, isto é, aquele que lê para que seus alunos tenham prazer no texto, tem de ser um artista. Só deveria ler aquele que está possuído pelo texto que lê. Por isso eu acho que deveria ser estabelecida em nossas escolas a prática de “concertos de leitura“. Se há concertos de música erudita, jazz e MPB – por que não concertos de leitura? Ouvindo, os alunos experimentarão os prazeres do ler. E acontecerá com a leitura o mesmo que acontece com a música: depois de ser picado pela sua beleza é impossível esquecer. Leitura é droga perigosa: vicia... Se os jovens não gostam de ler, a culpa não é deles. Foram forçados a aprender tantas coisas sobre os textos - gramática, usos da partícula “se“, dígrafos, encontros consonantais, análise sintática –que não houve tempo para serem iniciados na única coisa que importa: a beleza musical do texto literário: foi-lhes ensinada a anatomia morta do texto e não a sua erótica viva. Ler é fazer amor com as palavras. E essa transa literária se inicia antes que as crianças saibam os nomes das letras. Sem saber ler elas já são sensíveis à beleza. E a missão do professor? Mestre do Kama-sutra da leitura...

APERITIVOS

1. “Analfabeta não é a pessoa que não sabe ler. É a pessoa que, sabendo ler, não gosta de ler.“ (Quem foi que disse isso? Acho que foi o Mário Quintana).

2. A menininha de 9 anos me explicou como as crianças na sua escola aprendiam a ler: “Aqui na Escola da Ponte não aprendemos letras e silabas. Só aprendemos totalidades...“

3. Os compositores colocam em suas partituras indicações para orientar o intérprete: lento, presto, adagio, alegretto, forte, piano, ralentando. Os escritores deveriam fazer o mesmo com seus textos. Há textos que devem ser lidos lentamente, expressivamente, tristemente. Outros que exigem leveza, rapidez, riso. O leitor experiente não precisa dessas indicações. Mas elas poderiam ajudar os principiantes.

4. “Mais valem dois marimbondos voando que um na mão“ (Almanak do Aluá).

5. Graciliano Ramos relata que, quando menino, na escola lhe ensinaram um ditado: “Fale pouco e bem e ter-te-ão por alguém“. Ele repetia o ditado mas ficava com uma dúvida: “Quem será esse ‘Tertião’?“

(Correio Popular, Caderno C, 19/07/2001.)


Fonte: http://www.rubemalves.com.br/oprazerdaleitura.htm

13 comentários:

  1. PARABÉNS, colegas...

    Só o nome do blog já diz tudo: Ler é navegar.....

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  2. Colegas, esse trecho de suas postagens está difícil pra ler, pelas cores de fundo e de letras... Sugiro acertarem!!

    José Benedito.


    APERITIVOS

    1. “Analfabeta não é a pessoa que não sabe ler. É a pessoa que, sabendo ler, não gosta de ler.“ (Quem foi que disse isso? Acho que foi o Mário Quintana).

    2. A menininha de 9 anos me explicou como as crianças na sua escola aprendiam a ler: “Aqui na Escola da Ponte não aprendemos letras e silabas. Só aprendemos totalidades...“

    3. Os compositores colocam em suas partituras indicações para orientar o intérprete: lento, presto, adagio, alegretto, forte, piano, ralentando. Os escritores deveriam fazer o mesmo com seus textos. Há textos que devem ser lidos lentamente, expressivamente, tristemente. Outros que exigem leveza, rapidez, riso. O leitor experiente não precisa dessas indicações. Mas elas poderiam ajudar os principiantes.

    4. “Mais valem dois marimbondos voando que um na mão“ (Almanak do Aluá).

    5. Graciliano Ramos relata que, quando menino, na escola lhe ensinaram um ditado: “Fale pouco e bem e ter-te-ão por alguém“. Ele repetia o ditado mas ficava com uma dúvida: “Quem será esse ‘Tertião’?“

    (Correio Popular, Caderno C, 19/07/2001.)

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    1. Fiz algumas tentativas... melhorou, mas ainda estou estudando formas de harmonizar o "corpo" das postagens...

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    2. FICOU MUITO MELHOR, GOSTEI MUITO DO JEITO QUE OBLOG ESTÁ AGORA HARMONIOSO, COM BOA VISUALIZAÇÃO.OBRIGADA POR MELHORÁ-LO PARA TODOS NÓS. ABRAÇOS PARA VOCÊ, TÂNIA.

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  3. GOSTEI MUITO DO TEXTO, APESAR DE ACHAR, QUE ELE PODERIA SER MAIS OBJETIVO E MENOR. TAMBÉM AS CORES DE FUNDO PODERIAM SER MAIS CLARAS COM UMA MELHOR VISUALIZAÇÃO DAS IMAGENS DE FUNDO. MAS O CONTEÚDO DO TEXTO É MUITO PERTINENTE COM O TÍTULO, AMBOS FORMANDO UMA GRANDE PARCERIA DO CONTEXTO.

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  4. VIAGENS PELO MUNDO DA LEITURA
    Lembro-me com saudade das leituras realizadas pela minha professora da quarta série primária, hoje quinto ano. Ela lia para nós as histórias de MONTEIRO LOBATO, QUE ME FASCINAVAM. Eu saboreava as histórias, que povoavam minha imaginação. Essas histórias eram lidas toda sexta feira. Eu esperava essas aulas ansiosamente. Foi através da professora Vilma, que tomei gosto pela literatura e pássei mais tarde, na ADOLESCÊNCIA, a trocar qualquer programa para FICAR LENDO NOS FINAIS DE SEMANA, me deliciei com as OBRAS de JORGE AMADO, li todas. Quardava todo o dinheiro que ganhava para comprar sua Coleção. Os livros, que mais gostava eraM Capitão de Areias, Teresa Batista Cansada de Guerra e Dona Flor e Seus Dois MARIDOS. Isso me ajudou a VIAJAR pelo Mundo dos Livros, melhorando meu vocabulário e minha escrita.
    MAIS TARDE, O LIVRO foi MEU amigo fiel de todos os momentos, que me ajudou a me constituir como o ser humano, que hoje sou.

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    1. Adoro Jorge Amado! A maneira cinematográfica com que ele narra suas histórias, (sempre cheias de brasilidade), me encanta!!! Agora estou no início de "Tenda dos Milagres"; me preparando para mais uma viagem ao imaginário... navegando por águas brasileiras...

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  5. O MUNDO DA ESCRITA
    Fui alfabetizada pelo Método Tradicional, ou seja, pela Cartilha Caminho Suave aos seis anos. Saber reconhecer as letras, ajuntá-las, formar palavras, construir frases, pequenos textos, grandes textos, dissertações me levaram a Amar as letras e me tornar uma Educadora.
    Atualmente leio para os meus alunos, tanto do ensino fundamental como do Ensino Médio.
    Ao ler para eles e com eles, dramatizo as histórias, esperando que aconteça com eles, o que aconteceu comigo - O Prazer pelo Mundo das Letras, das Leituras e dos Livros. Enfim, a descoberta do incrível AMIGO LIVRO sempre pronto a ajudar-nos a Desvendar outros mundo, outros sentimentos, outras vidas.
    Segundo MARIO QUINTANA, OS LIVROS NÃO MUDAM O MUNDO. OS LIVROS MUDAM AS PESSOAS, AS PESSOAS MUDAM O MUNDO.

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  6. SITUAÇÃO ENSINO-APRENDIZAGEM PARA O NONO ANO DO ENSINO FUNDAMENTAL -

    texto: AVESTRUZ autor: MÁRIO PRATA
    Individualmente os alunos após uma leitura silênciosa do texto, responder: 1. Qual a importância do Título do texto? Explique. 2. Quais são os Personagens da história?
    3. O que o Autor fala a respeito da Avestruz?
    4. Como o autor convenceu o garoto a trocar o Avestruz por outro animal? E que animal foi esse?
    5. Dê um outro final para o texto?
    6. Por que foi pedido para a amiga levar o seu filho ao psicólogo? Explique.
    7. O que você ahou do texto? Por quê?

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  7. SEQUÊNCIA DIDÁTICA PARA O ENSINO-APRENDIZAGEM DO TEXTO: MEU PRIMEIRO BEIJO AUTOR: ANTONIO BARRETO
    alunos do NONO ANO DO ENSINO FUNDAMENTAL
    Inicialmente, se fará uma pesquisa pelos alunos sobre o AUTOR E SUAS OBRAS.
    Em seguida, o texto será lido em voz alta pela professora.
    Na sequência, haverá um Diálogo entre os alunos enfocando A IMPORTÂNCIA DO BEIJO, quais as SENSAÇÕES que ele desperta e a sua importância ao longo da história da humanidade.
    E por último haverá uma Compreensão e Interpretação do texto enfocando:
    1. Você gostou do texto? Por quê?
    2. Qual o Espaço que passa a Narrativa?
    3. Em que época a história acontece?
    4. Qual a personalidade do menino, segundo Antonio Barreto?
    5. O texto é narrado em primeira ou em terceira pessoa? E o que isso representa em relação ao autor? EXPLIQUE.
    6. QUAIS SÃO OS PERSONAGENS DO TEXTO?
    7. Escreva uma OUTRA CONCLUSÃO para o texto?





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  8. SITUAÇÃO ENSINO-APRENDIZAGEM PARA O CONTO PAUSA, DE MOACIR SCLIAR alunos do nono ano do ensino fundamental
    A. Qual o significado para vocÊS DO tITÚLO DO TEXTO? Explique.
    B. Em que espaço ocorre a Crônica?
    C. Com qual intenção o autor usou esse titúlo?
    D. Quais são os personagens da história?
    E. Você gostou ou não do texto? Por quê?
    F. Em que tempo verbal ocorre os fatos?
    G. Como vocÊ ANALISA O COMPORTAMENTO DO PERSONAGEM PRINCIPAL da crônica?
    H. Crie um final diferente para a crônica de Scliar?

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  9. Revisitei e gostei, ficou mais arejado e, mais importante, com conteúdos pertinentes ao trabalho proposto. P A R A B É N S !!

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